21.10.23

#9 - Sobre voltar para onde não se queria

 Acordou trinta minutos antes do despertador tocar. Tamanha a antecipação e ansiedade, tornara-se comum acordar minutos antes da hora programada. Não precisava mais do estridente barulho do relógio. Ele acordou e ficou na cama. Ali deitado no escuro, fitando o teto. O estômago revirando e o coração palpitando.

Pensava consigo mesmo onde errara. Onde foi que tudo se perdera. Então se perguntava se o resto de sua vida seria igual. Teria que voltar a rotina que tanto odiava e que lhe fazia tão mal mais uma vez. Como pôde ter sido tão ingênuo a ponto de pensar que pudera escapar. Como pudera ser tão burro e preguiçoso de largar as coisas antes da hora e tentar mudar tudo sem preparo algum. 

O despertador tocou. Já estava na hora. Com pesar, ele levantou e sentou-se na beira da cama. Ainda pensando. Esperando para aproveitar os milisegundos que ainda tinha antes de começar a se atrasar de fato. O calor do cobertor o abandonara e o frio da madrugada o invadiu. Se pôs de pé enfim. Marchou vagarosomente até o banheiro. A claridade da luz o apunhalou nos olhos quando acionou o interruptor. Jogou água gelada no rosto e acordou ainda mais. 


"Por quê?" 


Ainda pensava. Como se não soubesse a resposta. Como se pudesse perguntar a outra pessoa além dele. Como se pudesse botar a culpa em alguém além dele. Mas era ele. Foi sempre ele. O único criminoso e vítima de seus próprios erros. Não era justo. Só que, ao mesmo tempo, era. 

 Era previsível, mas ele ignorara a previsibilidade. Sabia o que estava por vir, mesmo desejando não acontecer. Às vezes se perguntava se era inútil lutar contra sua própria natureza. Às vezes se perguntava se aquela era sua natureza mesmo. Começou a se trocar, cantarolando uma música que se repetia em sua cabeça desde ontem. Perfect Day do Lou Reed.

 Na música, o artista canta sobre como foi bom passar o dia com alguém que ele considera especial. Eles bebem no parque, vão ao zoológico dar comida aos animais, depois vão ao cinema e voltam para casa. Na primeira parte do refrão ele canta: 

"Oh, it's such a perfect day/Ah, é um dia tão perfeito", "I'm glad I spent It with you/estou tão feliz de tê-lo passado com você". 

Esse alguém é tão especial para o intérprete que o faz esquecer dos problemas e até de quem ele é. Ele canta: 

"you made me forget myself/você fez me esquecer de mim mesmo" e no verso seguinte: "I thought I was someone else, someone good/eu achei que era outra pessoa, uma pessoa boa".

 E aí percebemos que o relacionamento não é dos mais saudáveis, já que o intérprete parece não estar nas melhores condições quando se está longe da pessoa com quem dividiu este dia tão perfeito. E isso é só a letra da música. Quando paramos para escutá-la, notamos algo a mais. Do contrário que se espera de uma música que fala de um dia especial que se passa com alguém especial, seu tom não é nada feliz. 

O cantor murmura os versos e só sobe o tom no refrão que mais parece um lamento do que qualquer outra coisa. A melodia é triste, o ritmo é lento. O piano dá uma atmosfera romântica mas, ainda assim, a melancolia se destaca. Por anos fãs teorizaram em cima da música dizendo se tratar de uma declaração de amor à heroína e não a uma pessoa. O trágico caso de amor entre um dependente químico e sua droga favorita. A droga que te faz tão bem, mas tão mal ao mesmo tempo. O relacionamento tóxico definitivo.

 A teoria ganha força quando vemos como a música acaba. Com o cantor repetindo o mesmo verso, de novo e de novo: 

you're going to reap just what you sow/você vai colher o que você plantou". 

Ele repete o verso como um mantra. Como se quisesse fixar na própria memória que ele é o único culpado por tudo de ruim que acontece com ele. O único responsável pelo seu sofrimento.

A música na cabeça acabou. O tempo continuava a correr. Ele saiu pelo portão e adentrou a madrugada gelada antes de começar a se atrasar. O seu ímpeto era voltar para a cama quente, mas ele seguiu em frente. Ele tinha que colher o que plantou.