22.1.14

Alice

Alice não se encaixava em padrões. Era decidida, independente, de personalidade forte. Culta, muito inteligente, falava francês. Adorava ler bons livros e assistir bons filmes. Gostava de música erudita e poesia. Contradizendo o que sua aparência costumava dizer. Jovem no início da casa dos 20, mas com espírito de mulher na casa dos 50. Era do tipo de mulher forte e dominante. Não se rebaixava a ninguém, ditava suas próprias regras e conduzia sua própria vida. Tiros de julgamentos alheios eram repelidos pelo seu sólido escudo de auto confiança. Nada abalava sua estrutura. E que estrutura! Não era tão alta nem tão baixa. Magra encorpada, nada em seu corpo era exagerado ou chamativo demais. Não tão chamativos quanto seus olhos hipnotizantes. Um par de olhos que se perdiam entre o azul e o verde e que se fechavam quando ela ria. Seus lábios eram carnudos e pareciam ser desenhados e estampados em um rosto de porcelana. Seus longos e castanhos cabelos eram cacheados e ficavam quase sempre soltos, repousados sobre seus pequenos e delicados ombros. Usava sempre vestidos de cores fortes que desciam até metade de suas coxas. Vestidos justos o suficiente para esculpir suas curvas através do tecido. A todo momento olhos masculinos a seguiam por onde passava.

Alice usava vestido justo e curto não para chamar atenção, mas porque gostava. Ainda assim, atenção masculina era sempre bem vinda.

Alice não tinha amigos. Não mais. Os amigos que tivera eram todos do tempo de escola. No tempo em que era assediada pelos rapazes e invejada pelas moças. Alice sabia o quão bonita era, mas jamais agiu com arrogância. Nunca se achou melhor que os outros. Era humilde e caridosa, ajudava quem precisasse de ajuda. Por isso se tornara popular e cheia de amizades. Dos pais era a queridinha. Filha única, linda e meiga. Esperta desde muito pequena. Aos 7 sua mãe já lhe ensinava francês e lhe apresentava ao mundo da música clássica. No seu aniversário de 15 anos, seu pai desembolsara uma enorme festa, com direito a banda, vestido de princesa e um príncipe encantado 3 anos mais velho, contratado para a grande dança da noite num baile digno de conto de fadas. Alice ainda lembra dessa noite mágica, quando abraçava firmemente seu pai e sussurrava em seu ouvido "Você é o melhor pai do mundo!", e viu lágrimas escorrerem do rosto de seu velho. Tanto seu pai quanto sua mãe a chamavam de "minha linda". 5 anos depois, ainda se lembra de ouvir seu pai a chamando de "sua puta". E ainda chora ao relembrar desse último encontro com ele. A única coisa que abalava sua estrutura e despedaçava seu sólido escudo de auto confiança, era o julgamento e a rejeição de seus pais. Alice passou a se considerar órfã. Ela amava muito seus pais, mas o amor deixou de ser recíproco. O orgulho se convertera em vergonha. A bela Alice fora abandonada pelos pais e amigos. Pois foi julgada. Julgada por seguir seus próprios e naturais instintos.

Alice nunca se incomodou com as indiretas das moças invejosas do tempo do colégio, muito menos com o assédio dos rapazes. No fundo ela até gostava de ser chamada de "gostosa" por eles. Alice gostava de se sentir desejada. "Havia algum problema nisso?" ela se perguntava. Alice perdera sua virgindade na festa de aniversário de 15 anos com o tal príncipe, no banheiro do salão de festas alugado pelo seu pai. Embora não fora tão confortável, Alice gostou da sua primeira vez. Da primeira, da segunda, da terceira, da quarta e da vigésima. A maioria com homens diferentes, algumas vezes com mais de um homem só. Alice encontrara no sexo casual um novo hobby. Era mais que isso, era algo que a fazia se sentir muito bem. Quando decidiu juntar o útil ao agradável guardou segredo por um tempo. Meses depois resolveu contar para seus pais, pois sentia que eles deviam saber. Era uma quarta-feira e chovia muito. Alice não parava de tremer e quando finalmente contou, um enorme silêncio tomou a sala. O silêncio antecedeu um dolorido choro de sua mãe. Seu pai apenas olhava petrificado.

 "Por quê? Você sempre teve tudo!", balbuciou sua mãe.

 Realmente, Alice tivera tudo.

 "Você tem dinheiro, faz faculdade! Você não precisa disso!", berrou seu pai.

 Realmente dinheiro nunca faltou, sua família era de classe média alta.

 Alice se tornara prostituta não pelo dinheiro, mas pelo sexo. Ainda assim dinheiro era sempre bem vindo. "Você não tem um namorado? Pra quê se submeter a isso, minha filha?", disse sua mãe chorosa.

 Alice já tentara um namorado uma vez. Não deu certo. Relações monogâmicas não a satisfaziam. Alice gostava do sexo casual, com homens diferentes.

Então viu o amor evaporar dos olhos dos seus pais. Foi expulsa daquele lugar. "SUA PUTA!" a última vez que ouvira a voz de seu pai. Na rua, a caminho de casa, Alice soluçava e chorava alto. Em meio às lágrimas e água da chuva, ela lembrou do príncipe encantado que tirara sua virgindade. O rapaz era popular entre os amigos. Conhecido por desvirginar aniversariantes de festas que era contratado. Saía por aí levando mulheres desconhecidas pra cama. Se orgulhava disso e seus amigos e familiares o apoiavam. Era um homem de verdade que honrava o que tinha no meio das pernas. Alice nunca entendera a diferença.

Ela acordava de manhã para ir à faculdade. No horário da tarde até a noite, recebia mensagens no seu celular e e-mails do seus clientes. Cobrava por hora, não muito caro. Combinavam o lugar e se encontravam. Ela fazia de tudo, sempre com proteção.

Alice era prostituta porque gostava de sexo. Do sexo casual, sem compromissos, sempre com parceiros diferentes. "Tinha alguma coisa de errado nisso?", ela se perguntava.

Alice não se encaixava em padrões.

2 comentários:

  1. Anônimo00:36:00

    Respeito a escolha das pessoas, mas na minha opinião, sexo é algo muito íntimo para fazer com qualquer um. No caso, os pais dela não apoiar não foi a melhor alternativa.

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  2. Interessante crônica, achei de altíssimo nível. Muito bem escrita, com os tons certos de crítica social, sem exageros, sem ser repetitivo ou chato de mais para se ler.
    Em geral, tenho um pensamento muito mais aceitativo das relações tão polêmicas, quanto essa discorrida na história, e acrescento que embora compartilhe da mesma opinião, isso não é algo que vai mudar nem em dez anos.. ou o triplo, ou ainda mais. A visão da sociedade foi machista por todo o registro histórico, estamos começando a reparar nessa desigualdade sexual, mas ainda está no começo do início...
    Em suma, bom texto.

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