18.7.16

Baque

Foi um baque.
Pulou para dentro do meu sono como um tiro, e me acordou. O baque abafado foi seguido de um burburinho.
Que horas são?
6:40 da manhã.
Faltam 20 minutos para o celular despertar. Eu precisava estar dormindo para ser acordado por ele.
O burburinho da rua aumenta e agora traz junto a si gritos de horror e lamentações. É melhor alguém ter morrido para me fazer acordar 20 minutos mais cedo!
Olho pela janela. Três andares abaixo um aglomerado de gente curiosa com alguma coisa vai se formando. Não consigo ver o que é. Já que estou acordado, posso usar esses 20 minutos que me restam para dar uma olhada.
Escondo a samba canção com uma calça e pego o elevador. A portaria está vazia e a rua cheia.
19 minutos para ser curioso.
Dirijo-me ao centro da comoção. O burburinho tá na minha cara, agora. O choro dolorido de uma senhora se destaca. Parece sério.
Aproximo-me da roda de transeuntes, vejo finalmente. De primeira vista fiquei confuso. Por alguns segundos perguntei-me o que era aquilo até conseguir distinguir a imagem.
16 minutos.
E ali, no meio da roda de transeuntes, jaz outra roda rubra rosada e espatifada no chão. Como se um tomate gigante tivesse sido esmagado por deus, ali, na frente do meu prédio. Em cima da mancha vermelha e rosada, o corpo nú de André, um jovem vizinho de porta. O reconheci pelas tatuagens no corpo. Se não fossem por elas seria impossível. Não havia mais cabeça; bem, havia um pouco, mas, seu rosto, sem dúvida, não existia mais. Seu corpo estava amassado contra o asfalto. Por um momento lembrei-me dos desenhos animados que via quando criança, quando algum personagem passava por cima do outro com um rolo compressor. Estava murcho, não parecia o André, mas sim uma roupa de André amarrotada. Uma pele prensada contra gordura e sangue.
Pergunto o que aconteceu para alguém ao meu lado.
- Ouvi dizer que o rapaz estava triste com o fim de relacionamento. Há dias não comia e não saía de casa. Parece que ele pulou do terraço, mergulhou de cabeça direto no chão. Que horror.
Vantagens de ter vizinhos fofoqueiros. Agora que ele disse, vejo onde a cabeça de André foi parar: a dois metros do corpo, mais à frente. Também a uns três metros mais para a esquerda e mais em vários outros pontos da rua. Tinha crânio e cérebro pra tudo quanto é canto. Que bagunça.
Soube que ele namorava uma moça problemática. É tudo que sei. Pobre rapaz. No auge dos seus dezoito, dezenove anos. Não o conhecia bem. Via ele de relance de vez em quando. Um bom dia, boa noite, um aceno de cabeça. Só.
9 minutos.
Mas parecia ser um moleque legal. Vivia brigando com a mãe. Ela não aceitava o namoro, acho. Ela chora e grita de dor do outro lado da roda de curiosos, onde é consolada.
- Meu deus. É isso o que um coração partido pode fazer... - diz uma senhora.
- Se isso é o que um coração partido pode fazer, eu não sei. Mas sei o que uma cabeça estourada no asfalto pode fazer: atrasar a vida dos outros.
Fala um velho ao meu lado. Ele olha pra mim:
- Você sabe do que estou falando, não é, amigo? Semana passada outro coitado se matou na avenida principal. Pulou de um edifício maior bem no horário de pico. Parou o trânsito. Levei o dobro de tempo pra chegar em casa.
Sei do que o velho fala. Estava no trânsito também. Voltando para casa. O cara não podia ter se matado mais cedo, ou um pouquinho mais tarde. Não, tinha que ser no horário mais movimentado do dia. Nunca pensei que um suicida saltador de edifícios poderia parar o trânsito assim.
- Foi um estrago. Quando passei pelo morto no trânsito, você tinha que ver. Não era um presunto, era carne moída, irmão! Tiveram que catar o cara com uma pá. Rasparam o maluco do asfalto. Esse moleque aí não foi nada. Já vi coisa pior.
Por um momento me senti num concurso de suicídios. E André não tinha vencido como a morte mais violenta.
Então outro baque me desperta e me faz notar algo assustador: não estou chocado com o acontecido. Nem esse na porta de casa, nem o de semana passada na avenida. Bem, fiquei surpreso na hora que reconheci André, pois o conhecia de vista. Mas não estou chocado. Horrorizado. Triste. Só curioso.
É assustador.
Pessoas puxam seus smartphones para tirarem fotos e filmarem o que restou de André. A internet anda meio chata, ela implora por um vídeo de um cadáver murcho e sem cabeça.
Muito assustador.
Li uma vez que a vida na cidade anestesia os homens. Sou testemunha disso agora. Noticiários de desgraça, banalização da violência. Do grotesco. É só mais uma terça-feira pra gente.
Um morre hoje, outro amanhã. Acontece todo dia, por isso é normal. Não devia ser. Aos poucos perdemos a empatia. Perdemos a humanidade. Vai ficando mais e mais normal. Imagi-
7 horas.
O celular desperta no meu bolso. Nossa, quase me esqueci. Tenho que subir correndo e me arrumar. Se chego no escritório atrasado meu chefe me joga lá de cima.

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